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domingo, 18 de dezembro de 2011

Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos (Parte VI)



Nesta nossa Linha do Tempo da Química Medicinal atingimos a sexta parte e vamos tratar da invenção da cimetidina, inovação terapêutica que originou todos os antagonistas seletivos H2 para o tratamento e prevenção da úlcera péptica.


Em 1964, Bjorn Folkow e Georg Kahlson, trabalhando em Gottemburg, Suécia, publicam seus resultados de pesquisas obtidos durante ensaios com derivados sintéticos da histamina, apresentando substituintes alquila no anel heterocíclico imidazólico, descrevendo diferentes respostas sobre distintos tecidos e concluindo sobre a existência de mais de um tipo de receptores histaminérgicos. Nesta mesma época, Sir James W. Black que estava ingressando nos institutos de pesquisa da Smith, Kline e French (SK&F), em Welwyn, Inglaterra, após estada de sucesso na ICI, que resultou na invenção do propranolol (Parte V desta Linha do Tempo da Química Medicinal), postula a hipótese de que os conhecidos compostos anti-histamínicos, à época, não atuavam no controle da produção de suco gástrico provavelmente por não terem afinidade pelo sub-tipo de receptores, predominante no estômago. Os biorreceptores sensíveis aos anti-histamínicos conhecidos, ganharam a denominação sub-tipo H1, enquanto aqueles do estômago seriam denominados H2, hoje classificados entre os receptores acoplados a proteína G (GPCR´s). Em 1966, Black, William A. M. Duncan e Michael E. Parsons desenvolvem um modelo farmacológico capaz de detectar os efeitos de substâncias na inibição da produção do suco gástrico, em ratos anestesiados. A esta época, Charon Robin Ganellin, que retornava de um pós-doutoramento nos laboratórios de Cope nos EUA, passa a liderar o grupo de químicos medicinais da SK&F, que conta ainda com Graham J. Durant e John C. Emmett e inicia estudos de síntese de análogos da histamina incluindo na cadeia etil-amina a função guanidina, tema da especialidade de Durant. Após bioensaiar 200 derivados imidazólicos modificados, o composto guanilhistamina (-NH-C(=NH)-NH2) apresentou propriedades inibidoras da produção de suco gástrico induzidas por histamina, embora consideradas insuficientes e atribuídas à semelhança estrutural com a própria histamina, agonista natural dos receptores, visto a possibilidade de ionização do término da cadeia etílica deste derivado assim como ocorre com a histamina. Objetivando aumentar as propriedades inibitórias da produção do suco gástrico nos novos análogos, Emmett decide “diferenciar” estruturalmente ainda mais este composto inicial da histamina e obtém um isóstero do derivado guanilhistamina, com diferentes propriedades ionizáveis, trocando um átomo de nitrogênio do grupo guanidila, por um enxofre. Este composto N-metiltioureídico (-NH-C(=S)-NH-CH3) apresentou, como esperado, propriedades inibidoras da produção de suco gástrico induzidas por histamina. Observando esta melhora de atividade para o isóstero tioamídico, novas alterações moleculares foram imaginadas, sempre aumentando a diferença estrutural com o agonista natural, não seletivo. Desta feita, um aumento da cadeia lateral foi introduzido, visando distanciar o sítio ionizável terminal, do anel imidazólico. O novo bis-homólogo, denominado burinamida (Imidazolil-(CH2)4-NH(C(=S)NH-CH3; Nature 1972, 236, 385), apresentou-se como o mais eficiente dentre todos os derivados bioensaioados em termos de potência. Entretanto, quando administrado por via oral, mostrou-se desprovido de efeitos significativos, frustrando a equipe de Ganellin, mais uma vez. Objetivando superar esta limitação, decidem introduzir grupos alquila no anel imidazólico (Im) visando reduzir a tautomeria do sistema heterocíclico, eventualmente responsável pelo reconhecimento molecular diferenciado entre os dois sub-tipos de biorreceptores da histamina conhecidos à época, além de também modificar o sítio protonável deste sistema heterocíclico. Fruto desta estratégia nasce a metionamida (veja figura), em 1970, apresentando um grupamento metila no C-5 do sistema imidazólico e um átomo de enxofre isóstero do segundo metileno da cadeia butílica da burinamida. Este novo bioisóstero apresenta as propriedades desejadas sendo desta feita ativo per os. Infelizmente foi observado durante a fase de ensaios clínicos, que esta substância induzia desordens sanguíneas severas, que embora reversíveis, inviabilizaram seu uso terapêutico. Convencidos de que a natureza polar terminal na cadeia lateral devia ser mantida, Ganellin e seus colaboradores modificaram a função tiouréia, introduzindo outros grupos polares como o nitro. Assim o derivado com a unidade nitrovinila (-NH-C(=CH-NO2)-NHCH3) ou cianovinila (-NH-C(=CH-CN)-NHCH3) terminal, foram obtidos e se apresentaram bastante eficazes sem toxicidade. Desta feita, a limitação encontrada dizia respeito à baixa solubilidade aquosa o que dificultava, significativamente, o escalonamento sintético destes compostos de difícil purificação por cristalização fracionada (etanol-água), sendo portanto, novamente modificados estruturalmente, agora pela re-introdução da unidade cianoguanidila terminal (-NH-C(=N-CN)-NHCH3), presente nas primeiras séries investigadas. Este novo composto se mostrou eficaz, ativo por via oral, com adequada seletividade e atendeu todos os requisitos necessários a seu escalonamento sintético. Esta substância não apresentou toxicidade e foi denominada cimetidina. Como curiosidade cabe registro a ausência, ao nosso conhecimento, de relatos sobre estudos da estabilidade relativa dos três tautômeros possíveis da função ciano-guanidila terminal ou da configuração preferida do tautômero conjugado, possivelmente favorecido, E/Z da cimetidina.
A introdução terapêutica da cimetidina (TagametR; anTagonista-cimetidine) se dá em novembro de 1976 pela SK&F e revoluciona o tratamento da úlcera péptica, além de inaugurar a era dos fármacos, ditos blockbuster, capazes de superarem a marca de 1 bilhão de dólares americanos em vendas anuais. Várias cópias terapêuticas foram posteriormente introduzidas no mercado, tendo sido a ranitidina (Glaxo-Welcome) a primeira e a que foi capaz de suplantar a molécula pioneira em vendas e, como aquela, também ingressou no time dos fármacos blockbuster.


O Dr Ganellin apresentou durante a décima edição da Escola de Verão em Química Farmacêutica Medicinal, realizada, em 2005, na Universidade Federal do Rio de Janeiro, conferência onde descreveu sua versão da descoberta da cimetidina. Mais recentemente Ganellin se retirou da indústria e tornou-se docente na University College de Londres estudando novos ligantes para sub-tipos de receptores histaminérgicos (hoje são conhecidos quatro sub-tipos) de onde se aposentou, em 2010, aos 76 anos de idade.
A gênese da cimetidina exemplifica a genialidade de Sir James Black, Prêmio Nobel de Medicina, em 1988 (Parte V desta Linha do Tempo da Química Medicinal) e consolida a abordagem racional para planejamento de novos fármacos baseada na estrutura dos ligantes dos alvos terapêuticos (ligand-based drug discovery), estratégia da Química Medicinal que permitiu a invenção de fármacos inquestionavelmente inovadores que se tornaram essenciais à terapêutica, além de consagrar também a multidisciplinaridade do processo de inovação em fármacos, especialmente o casamento Química Medicinal e Farmacologia.


Na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal, trataremos da invenção dos inibidores da enzima conversora de angiotensina (ECA) exemplificados pelo captopril.
Desejo a todos um muito próspero 2012.


Obrigado por lerem.

sábado, 10 de dezembro de 2011



Nesta nossa Linha do Tempo da Química Medicinal atingimos a quinta parte e vamos tratar da invenção do propranolol, primeiro fármaco anti-hipertensivo atuando como antagonista seletivo de receptores tipo-beta da adrenalina.
As doenças cardiovasculares (DCV) são responsáveis por inúmeros óbitos, sendo consideradas uma das mais importantes doenças crônicas não transmissíveis. Estima-se que as DCV mataram mais de 18 milhões (2009) de pessoas no mundo, podendo vitimar 24 milhões em 2030, segundo estimativas da Organização Mundial da Saúde (OMS). Estes elevados índices de mortalidade têm inúmeras causas que se agravam com o estilo de vida atual da sociedade ocidental exigindo atenção redobrada dos sistemas públicos de saúde no mundo. O uso de medicamentos ditos beta-bloqueadores representam, até hoje, importante instrumento de controle destas patologias associadas a hipertensão e à época do seu lançamento, em 1964, o propranolol pode ser considerado como marco na inovação terapêutica, tendo modificado a face da medicina cardiovascular.


A história começa por volta da metade do século passado quando os laboratórios Eli Lilly, em Indianópolis, EUA, iniciaram projetos de pesquisas visando obter medicamentos que atuassem ao nível da resposta fisiológica da adrenalina, como bronco-dilatadores. Neste contexto, John Mills, um químico orgânico da Divisão de Síntese Orgânica, sintetizou alguns análogos modificados da adrenalina, entre eles o derivado com substituinte isopropila na função amina secundária terminal, denominado isoproterenol. Este derivado com grupamento estericamente mais volumoso do que a substância original, foi posteriormente modificado ao nível dos substituintes hidroxilados do sistema catecolíco, substituídos por dois átomos de cloro, invertendo a natureza hidrofílica da catecolamina fisiológica, motivado pela busca de propriedades anti-adrenérgicas no novo análogo. Este derivado, número 20255 e denominado dicloroisoprenalina (DCI), foi estudado nos laboratórios de farmacologia liderado por Irwin Slater, que descreveu suas propriedades anti-adrenalina, em 1958, numa publicação feita com co-autoria de C. E. Powell no Journal of Pharmacology and Experimental Therapeutics (JPET). Os autores não fizeram nenhuma menção aos sub-tipos de receptores adrenérgicos descritos por Raymond Ahlquist, dez anos antes. Aliás, a teoria de adrenoreceptores duais de Ahlquist, foi duramente rejeitada numa primeira tentativa de publicá-la no JPET, editado pela Sociedade Americana de Farmacologia e Terapêutica Experimental, o que o levou a submeter seu manuscrito ao American Journal of Physiology que o publica, em 1948. À época havia uma tendência nos farmacologistas, influenciados por Clark, Gaddum, Ariens, entre outros, em investigarem apenas os efeitos das substâncias sobre receptores, sem maiores preocupações com os sub-tipos. Ao contrário, Ahlquist aborda o tema dos receptores em seus estudos, simpático ao estilo de Ehrlich, que já havia sugerido distinção entre biorreceptores anos antes. Isso o levou a reconhecer e propor, pioneiramente, a natureza alfa e beta dos sub-tipos de receptores adrenérgicos, podendo ser considerado o pai da farmacologia cardiovascular.

Em 1957, numa conferência apresentada na reunião anual da Federação Americana de Sociedades de Biologia Experimental, ocorrida em Chicago, Slater anuncia os resultados dos efeitos do DCI na resposta adrenérgica, que estariam publicados um ano após. Nesta ocasião, estava presente na plateia Neil Moram, Chefe do Departamento de Farmacologia da Emory University que, adepto da teoria dual de Ahlquist, pede a Slater amostras do DCI para estudar em seu laboratório em Atlanta. No ano seguinte, Moran, em colaboração com Marjorie Perkins, publica no mesmo JPET seus resultados, apontando para a seletividade do DCI sobre os receptores beta-adrenérgicos do coração, observados em modelos de cães. Estes resultados chegaram ao conhecimento de James W. Black, médico escocês que, desde o tempo em que lecionava fisiologia na Universidade de Glasgow, se interessava na fisiopatologia da angina e outras doenças cardíacas. Em atividade nos laboratórios da Divisão Farmacêutica da Imperial Chemical Industries (ICI), em Londres, Black se interessava por substâncias que pudessem ter efeitos beta-bloqueadores e ensaia em seus modelos o DCI e alguns derivados sintéticos obtidos por John Stephenson, em 1959, na ICI. Entre estes está o pronetalol, derivado onde o sistema orto-diclorobenzeno do DCI foi substituído por um grupo naftila, comparável em termos de hidrofobicidade e que apresentou importantes propriedades beta-bloquadoras, seletivas, tendo sido ativo por via oral e lançado no mercado para o tratamento da angina. Algum tempo depois, observaram-se em pacientes tratados com o pronetalol, importantes efeitos hipotensores, confirmados em pacientes hipertensos. Ensaios de toxicidade crônica com pronetalol evidenciaram efeitos carcinogênicos que restringiram a indicação do fármaco apenas para pacientes hipertensos em risco de vida. Novas modificações moleculares foram então introduzidas, chegando-se ao composto número ICI 45520, em que aumentaram-se a distância da cadeia hidróxi-etilamina ligada ao anel naftalênico do pronetalol pela introdução de uma sub-unidade oximetilênica (-OCH2), identificando-se o alfa-naftol como matéria-prima de escolha para sua síntese, chegando-se ao propranolol. Desta feita, observaram-se para este novo análogo batizado de InderalR, importantes e seletivas propriedades beta-bloqueadoras, que veio a ser o primeiro fármaco, lançado em 1964, indicado para o controle da hipertensão agindo por este, então novo, mecanismo de ação e representando importante inovação terapêutica. Após o sucesso observado pelo propranolol para o tratamento da hipertensão e arritmias cardíacas, foram inúmeras as cópias terapêuticas (me-too) introduzidas, e melhoradas (me-better) exemplificadas pelo alprenalol, oxprenolol, timolol, entre outros.

A invenção do propranolol, por Black e colaboradores, foi crucial para consolidar as bases moleculares da existência e envolvimento dos biorreceptores nas respostas terapêutica dos fármacos, que até seu surgimento, era matéria polêmica entre os farmacologistas da época. Ademais, sua descoberta também ilustra a importância das ideias de Ehrlich e Fischer na construção do conhecimento em Química Medicinal ao longo do século XX.
Sir James Black, repetiu, alguns anos após, com sucesso, a mesma abordagem que o levou ao propranolol e que podemos definir como abordagem fisiológica - onde os aspectos clínicos da doença a ser tratada orientam a escolha do alvo terapêutico para o futuro fármaco - ao inventar a cimetidina, outro fármaco inovador surgido em 1975, agora no laboratório Smith, Kline & French, na Inglaterra. Este fármaco foi o primeiro antagonista-seletivo de receptores histaminérgicos do sub-tipo 2 com indicação terapêutica para o tratamento da úlcera péptica e que estará na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal.

Por estas marcantes contribuições à terapêutica, Sir James Black foi premiado com o Nobel de Medicina, em 1988, ao lado de Gertrude Belle Elion e George Hitchings, outros brilhantes inventores de fármacos, seus contemporâneos.
Boas Festas e obrigado por lerem.