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domingo, 19 de fevereiro de 2012

Sobre as moléculas dos fármacos: os acetatos famosos

             Hoje me aconteceu de ler um artigo no Chemical & Engineering News (http://cen.acs.org; Chemical & Engineering News, 90, January 30, 2012) onde se comentava uma recente polêmica científica, referente à presença de arsênio (As) no DNA de organismos que vivem em ambiente rico em As, como a bactéria GFAJ-1, do lago Mono, nos EUA. Lá, pesquisadores identificaram nucleosídeos com arsênio no lugar do fósforo, em um autêntico exemplo de isosterismo na natureza. Decidi interromper a série Linha do Tempo da Química Medicinal, para incluir este post em homenagem ao Carnaval 2012. Claro que continuarei a série, em sua parte XIX, conforme prometido, tratando da descoberta/invenção dos fármacos antivirais, mas depois das festas de Momo!

Lembrei-me, ao ler a matéria do C&EN, de que os primeiros fármacos do século XX, nos idos de 1905, continham o elemento químico As e tinham indicações para o tratamento de doença sexualmente transmissível, como o SalvarsanR e o SalvarsolR, inventados por Ehrlich e Fourneau, respectivamente. Claro que o segundo se originou do primeiro, basta se olhar suas estruturas químicas, por uma estratégia que se fosse contemporânea seria chamada de simplificação molecular da arsefenamida, combinada com uma reação sintética, então na moda, como a acetilação. Claro que aos olhos contemporâneos, moléculas orgânicas contendo As (C-As; organo-arsenicais) não nos lembrariam, de forma alguma, fármacos! Talvez por associação livre de idéias, talvez por identificar um padrão molecular comum nestes fármacos pioneiros, representado pelo N-acetato de regioisomêros do aminofenol (em azul), me ocorreu que, provavelmente, aí se tivesse iniciado os fármacos “me-too”. Lá nos primórdios!
As estruturas químicas destes fármacos iniciais me chamaram a atenção para uma “coincidência molecular” representada pela presença de grupamentos acetatos, traduzindo talvez, por que não dizer, um “modismo científico”. Nos primórdios da Química Orgânica Sintética se dispunha de anidrido acético e já se conhecia a molécula do paracetamol (1886), embora suas propriedades anti-térmicas e analgésicas não o fossem, a acetanilida já era conhecida, desde 1878! Fruto da acetilação da anilina.
Ah, estes acetatos famosos !

As duas hidroxilas da morfina já haviam sido acetiladas (1895) para fornecer um fármaco, depois proscrito, que foi a heroína ou diacetil morfina comercializada pela Bayer. Não foi à toa, que a mesma empresa já havia acetilado o acido salicílico (1889) para chegar ao ácido acetilsalicílico (AAS), a AspirinaR que certamente tem grande parcela de responsabilidade na transformação de uma pequena empresa emergente, à época, como diríamos hoje, na Big-Pharma que é a Bayer atual. Quem, de minha geração, não lembrará do slogan da Bayer do Brasil: “Se é Bayer. É bom!” Tudo graças a um “reles” acetato de fenol de um ácido benzóico!  A hipótese do modismo do “acetila o que puder”, se mostra viável quando consideramos a estrutura da acetazolamida, primeira sulfa diurética, descoberta já nos anos 50, que revolucionou o tratamento de cardiapatias onde se empregavam diuréticos como coadjuvantes. Até então, eram usados compostos organo-mercuriais (C-Hg), com propriedades tóxicas e sendo, a exemplo do SalvarsanR de Ehrlich, também um fármaco organo-metálico! Mais uma coincidência. Será ?
Obrigado por ler.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos (Parte VIII) - As estatinas

    Nesta nossa Linha do Tempo da Química Medicinal atingimos a oitava parte e vamos tratar do surgimento das estatinas, inovação terapêutica que originou todos os fármacos antilipêmicos, inibidores da enzima 3-hidroxi-3-metil-glutaril Co-A redutase (HMGCo-AR) com indicação para o tratamento e prevenção de doenças cardiovasculares de elevados índices de mortalidade.

   Desde 1950 são conhecidos os riscos que taxas sanguíneas elevadas de colesterol têm para doenças cardiovasculares, sendo o controle plasmático da sua forma ligada às proteínas de baixa densidade (LDL-C), fundamental para preveni-las.
   A busca por agentes terapeuticamente capazes de controlarem as taxas de colesterol plasmático, tem estimulado intensa atividade de pesquisa nos laboratórios das indústrias farmacêuticas que descobrem/inventam novos fármacos.
   O conhecimento de que a HMGCo-AR opera na biossíntese do colesterol produzindo o ácido mevalônico, essencial à formação das unidades C-5 que levam ao esqualeno, último precursor acíclico desta biossíntese isoprenóide, a credenciou como possível alvo terapêutico de fármacos antilipêmicos.
   A história das estatinas se inicia, em 1976, no Japão quando o microbiologista Dr Akira Endo, dos laboratórios Sankyo Co., buscando substâncias potencialmente antibióticas, isola do fungo Penicillium citrinum um derivado policetídeo (ML236B, Figura), que denominou compactina. Este produto natural apresentava em sua estrutura, características terpênicas com um esqueleto decalínico multi-substituído com quatro dos seus sete centros estereogênicos. Embora com alguma propriedade antibiótica identificada por Endo e seu grupo de pesquisas, este terpeno foi reconhecido pela presença da função delta-lactona-beta-hidroxilada, como capaz de mimetizar o intermediário envolvido na redução de HMGCo-A promovida pela HMGCo-AR em sua forma acíclica. Em 1979, ensaios in vivo em cães indicaram a redução do colesterol e a capacidade de inibir a enzima desejada com valor de Ki = 1,4 nM, comportando-se como inibidor competitivo de maior afinidade que o substrato natural. Estes promissores resultados na busca de um novo fármaco antilipêmico, confirmaram o acerto de Endo ao reconhecer a similaridade molecular entre a compactina e o substrato enzimático da HMGCo-AR. A descoberta deste inibidor natural incentivou diversos laboratórios de pesquisa a dedicarem esforços na busca de outras substâncias ativas sobre a  HMGCo-AR, sendo objeto de amplos estudos nos laboratórios da Beecham Pharmaceuticals, em Londres e na Merck Sharp Dohme (MSD), Rahway, New Jersey, EUA. Neste mesmo ano, pesquisadores da MSD, isolaram de outra fonte natural (Aspergillus terreus) um terpeno denominado mevilonina, posteriormente chamada lovastatina, como um alfa-homólogo em C-3 da compactina original de Endo. A compactina e lovastatina foram os compostos-protótipos na descoberta de outros HMGCo-AR inibidores (HMGCo-ARi). O derivado decalínico da MSD apresentava uma desvantagem estrutural em relação ao composto original de Endo. O sistema decaliníco da lovastatina possuía um centro estereogênico a mais, exatamente referente ao grupamento metila em C-3. Estudos sobre a relação entre a estrutura química e a atividade inibidora de HMGCo-AR nestes derivados decalínicos, indicaram, inicialmente, que a introdução de um novo grupamento metila na cadeia lateral em C-1, abolindo sua quiralidade e, portanto, favorecendo sua síntese, mantinha a atividade do produto natural. A forma aberta da lactona da lovastatina apresentava maior afinidade pelo alvo terapêutico (Ki = 0,6 nM), sendo mais ativa que a forma lactônica e corroborando a hipótese de similaridade molecular entre essas sub-unidades estruturais ao nível do sítio de reconhecimento da HMGCo-AR, enquanto que, ao mesmo tempo, atribuía caráter farmacofórico para esta sub-unidade estrutural oxigenada presente nestas substâncias. Estes resultados orientaram, em 1982, a realização dos primeiros ensaios clínicos com uma estatina, indicando significativa redução do LDL-C, com excelentes benefícios terapêuticos para os pacientes estudados. Em 1987, a agência regulatória norte-americana Food and Drug Adminstration (FDA) aprova a simvastatina (Zocor®), análogo sintético da lovastatina, três vezes mais potente, representando singela, mas astuta, simplificação molecular deste produto natural, visto que o centro esterogênico presente na cadeia de C-1 foi excluído. A simvastatina da MSD foi fruto de contínuos esforços de pesquisa da equipe comandada por Arthur A. Patchett e ingressou no mercado como o primeiro fármaco sintético atuando como inibidor de HMGCo-AR.
   Nesta época o principal metabólito ativo da compactina foi identificado nos laboratórios Sankyo do Japão, como sendo o derivado onde a função delta-lactona-beta-hidroxilada foi hidrolizada por esterases. Ensaios com este metabólito, o ácido-hidroxilado, denominado pravastatina demonstraram sua potente atividade inibidora de HMGCo-AR, sendo posteriormente lançada no mercado com as denominações de PravacholÒ e MevalotinaÒ, que foram as primeiras estatinas com a função lactona aberta, i.e. apresentando a sub-unidade farmacofórica ácido 3,5-diidroxieptanóico.
   Estudos de metabolismo subseqüentes, realizados com a compactina, indicaram que a posição C-3 do sistema decalínico era hidroxilada por ação das enzimas oxidativas hepáticas. O álcool secundário bioformado apresentava uma natureza alílica, com átomos de hidrogênio favorecendo sua desidratação por eliminação do tipo anti de uma molécula de água. O trieno formado aromatizava-se perdendo o grupo éster de C-1, aliás um bom grupo abandonador. Resultados similares foram obtidos nos estudos de estabilidade química da pravastatina em meados de 1980, indicando que os derivados aromáticos obtidos apresentavam atividade inibitória sobre a HMGCo-AR. Estas observações experimentais sugeriam que a sub-unidade  decalínica central teria caráter hidrofóbico no reconhecimento pela HMGCo-AR, podendo, portanto, ser estruturalmente modificada por sistemas aquirais aromáticos. Esta racionalização orientou a síntese de inúmeros derivados com o anel central aromático, representando, na linguagem da Química Medicinal, eficiente etapa de simplificação molecular do protótipo natural.
   A partir daí uma extensa série de análogos aromáticos foram descritos, sobretudo na literatura de patentes, contendo, diversos sistemas aromáticos, exemplificados por anéis imidazólicos, indolizínicos, pirazólicos, quinolínicos, pirrólicos, furânicos, tiofênicos, naftalênicos e indênicos, além de indólicos. Dentre muitos compostos ativos, o derivado indólico (XU 62-320), sintetizado em 1994 resultou na fluvastatina, primeira estatina a ingressar no mercado sem apresentar em sua estrutura o sistema decalínico quiral, presente na compactina original. Esta nova estatina possui como característica estrutural adicional, uma sub-unidade ácido heptanóico diidroxilado como substituinte do sistema indólico. Ademais, deve-se ressaltar a maior simplicidade estrutural deste fármaco, que não possui nenhum centro estereogênico no sistema lipofílico central, em contraste com os protótipos naturais que apresentam cinco centros quirais no anel decalínico original.
    Em 1991, foi lançado no mercado pela Pfizer outro me-too desta classe de agentes anti-lipêmicos, representado pela atorvastatina. Esta substância originada na empresa farmacêutica Parke-Davis, em trabalhos de Bruce Roth, possui o mesmo padrão estrutural das estatinas aromáticas, sendo o isóstero pirrólico e apresentando a mesma sub-unidade para-fluorfenila substituindo o anel heterocíclico central. A característica estrutural mais significativa da atorvastatina em relação à fluvastatina, reside em diferenças na natureza da cadeia ácida terminal que neste fármaco é saturada. A atorvastatina (LipitorÒ) foi o mais valioso me-too conhecido, tendo líder em vendas mundiais durante quase uma década, sendo o primeiro fármaco blockbuster capaz de superar a marca dos US$ 13 bilhões em vendas mundiais (2007), totalizando ca. US$ 100 bilhões em vendas durante período de vigência de sua patente, que expirou no principal mercado mundial (EUA) em 2011. O atraente mercado que representam as estatinas justifica o lançamento de mais um fármaco concorrente: a rosuvastatina (2003, CrestorÒ) pela Astra-Zeneca, que atingiu a marca dos US$ 7 bilhões em vendas mundiais em 2011, anunciando-se como nova estatina substituta da atorvastatina. Esta estatina apresenta o mesmo padrão estrutural não-decalínico, possuindo o anel central pirimidínico e a presença de uma função N-metil-metilsulfonilamina substituindo-o. Em 2009, surge a pitavastatina, derivado quinolínico de mesmas características estruturais gerais com Ki = 3,4 nM pela HMGCo-AR. As estatinas mais recentes apresentam como vantagens significativas sobre a atorvastatina uma maior biodisponibilidade oral (40% e 60%, respectivamente; atorvastatina = 12%) demandando menor dosagem posológica.
   A atorvastatina teve a vigência de sua patente vencida em novembro de 2011 tornando-se um fármaco genérico. Especialistas afirmam que será, provavelmente, o genérico de maior faturamento nos próximos anos. Uma nova síntese total foi realizada pelo Professor Luis Carlos Dias e o Dr Adriano S. Vieira no Instituto de Química da UNICAMP no âmbito do Instituto Nacional de Çiência e Tecnologia de Fármacos e Medicamentos (INCT-INOFAR) [http://www.inct-inofar.ccs.ufrj.br]   representando importante patrimônio intelectual para transferência de tecnologia ao setor produtivo industrial.
   A classe das estatinas representa aquela de maior faturamento em vendas mundiais por ano da história dos medicamentos, tendo se originado de produto natural de fungo, como a penicilina e fruto da perspicácia, tenacidade e numerosas pesquisas científicas contínuas e sistemáticas, envolvendo equipes interdisciplinares, industriais e acadêmicas, que colocaram a disposição das populações recursos terapêuticos inovadores no controle dos riscos de doenças cardiovasculares de elevado impacto epidemiológico. 

   Na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal, trataremos do surgimento dos anti-virais que a partir do aciclovir, descoberto por Gertrude B. Elion, pavimentou a via de chegada aos fármacos anti-HIV.
   Obrigado por ler.