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sábado, 17 de março de 2012

Linha do Tempo da Química Medicinal: assim nascem os fármacos - Parte IX

Entramos na nona parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal e vamos tratar agora dos fármacos anti-virais que durante muitos anos foram considerados ineficazes, quando pouco se conhecia sobre o ciclo evolutivo destes microrganismos.
O início desta história se dá por volta dos anos 50, do século passado, quando identificou-se as propriedades biológicas da beta-tiossemicarbazona, uma das primeiras substâncias ativas. Até então, os virologistas insistiam em avaliar o eventual efeito anti-viral em antibióticos, então disponíveis. Obviamente que o insucesso desta abordagem foi imenso, até que em 1957, Isaacs e Lindenmann descrevem o interferon e seu efeito no vírus da hepatite-B. As viroses provocam doenças severas e graves como varíola, poliomielite, influenza (e.g. gripe da ave), hepatite, AIDS entre outras, e podem ser controladas de forma preventiva através de vacinas, em alguns casos, nossa Linha do Tempo da Química Medicinal não se ocupará desta vertente pois nossa vocação são somente os fármacos.
A quimioterapia anti-viral começa em 1959, com o idoxuridine (IDU), que é o 5-iôdo-2’-deoxyuridina (Figura), análogo sintético de nucleosídeos sintetizado nos laboratórios de William Herman Prusof (1920-2011) na Universidade de Yale, EUA. Este fármaco descoberto pelo “pai da quimioterapia viral” e se mostrou efetivo para o controle do vírus Herpes simplex (HSV), sobretudo em infecções de pele. Considerado um potente agente citotóxico, foi adotado para uso tópico, sendo empregado até hoje. Alguns anos depois, em 1964, surge a vidarabina (Ara-A), anti-viral descoberto Stanford Research Institute, sintetizado por Bernard R. Baker “copiando” a estrutura de dois nucleosídeos isolados de uma esponja caribenha (Tethya crypta)     que possuia uma sub-unidade arabinosídica no lugar da clássica ribose. A vidarabina é uma substância nucleosídica modificada, sendo um híbrido entre os nucleosídeos clássicos que contém ribose e aqueles isolados do organismo marinho. A clássica ribose foi substituída pela arabinose dos glicosídeos marinhos. Este fármaco antiviral, foi um dos primeiros que pôde ser empregado sistemicamente devido ao seu reduzido perfil tóxico. É ainda nesta época que surge a amantadina e uma molécula irmã, a rimantadine, ambas possuindo um sistema biciclico adamantânico, que se mostraram eficazes no tratamento da influenza, sendo um dos primeiros fármacos antivirais não–nucleosídicos, atuando ao nível de proteínas virais envolvidas no processo de replicação. O combate à influenza empregando estes fármacos permitiu identificarem-se a capacidade de desenvolvimento da resistência viral. Inúmeros estudos posteriores culminaram, em 1993, no surgimento dos fármacos antivirais inibidores de neuroaminidase (NA), como veremos infra.
Em 1970, Sidwell e colaboradores, trabalhando na empresa ICN Pharmaceuticals Inc.   sintetizaram a ribavirina, primeiro fármaco antiviral com amplo espectro de ação, ativo em várias famílias de vírus RNA e DNA. Vale mencionar que não se identificou desenvolvimento de resistência para este fármaco, indicando, provavelmente, o envolvimento de mecanismo indireto para sua atividade.
A história da origem dos fármacos anti-virais tem um capítulo muito significativo, representado pela descoberta do aciclovir (ZoviraxR), realizada pela Dra Gertrude Belle Elion (1918-1999),  nos laboratórios da Burroughs Welcome nos EUA e Welcome na Inglaterra. A contribuição da Dra Elion à Química Medicinal foi imensa pois seu nome está ligado a descoberta de vários fármacos: inter-alia 6-mercaptopurina para leucemia; azatioprina, imunosupressor; alopurinol, para o trtamento da gôta; pirimetamina, para a malária; trimetoprim, para infecções bacterianas). Por esta magnífica contribuição a Dra Elion foi indicada ao prêmio Nobel de Medicina, em 1988, compartilhando-o com seu colega de laboratório George H. Hitchings (1905-1998) e com Sir James W. Black (1924-2010), inventor do propranolol descrito na parte V desta Linha do Tempo da Química Medicinal. A descoberta do aciclovir marca o surgimento da segunda geração de análogos de nucleosídeos, sendo este fármaco o mais seguro da classe, com primeira indicação para do tratamento da infecção por HSV. Cabe mencionar que o prefixo a, representa a ausência do ciclo furanosídico da ribose do nucleosídeo, e a despeito desta dissimilaridade molecular, este fármaco é fosforilado por timidino-quinase viral resultando no mono-fosfato que por ação de outras quinases virais produz o tri-fosfato de aciclovir, ativo sobre a DNA-polimerase do HSV.
Nos anos 80, com a quimioterapia antiviral já bem estabelecida, surge um novo e tremendo desafio, representado pela descoberta do vírus da síndrome da imunodeficiência adquirida (SIDA = AIDS). Este vírus, da classe dos retrovírus (HIV) foi descoberto em 1983 e descrito numa publicação na revista Science (DOI: 10.1126/science.6189183) por Luc Montagnier, Françoise Barré-Sinouss  e colaboradores, do Instituto Pasteur, FR, o que valeu a estes pesquisadores o prêmio Nobel de Medicina, em 2008. O primeiro fármaco antiviral descrito para a AIDS foi o AZT (azidotimidina), derivado sintético da quimioteca da Burroughs Wellcome, Inglaterra, que foi bioensaiado contra o retrovírus HIV no National Cancer Institute (USA), e descrito em 1985 como inibidor efetivo de retroviruses. O mecanismo de ação do AZT consiste numa fosforilação da hidroxila primária do fármaco por quinases virais, levando ao trifosfato-AZT que é capaz de interagir e inibir a enzima viral transcriptase-reversa (TR), atuando como um agente terminador de cadeia. Após a descoberta do AZT inúmeros outros didesoxinucleosídeos, atuando por este mecanismo foram descritos. Identificaram-se ao nível da TR um sítio alostérico de interação que representaria um novo alvo-terapêutico possível para o combate a AIDS. Após inúmeros esforços de pesquisa nesta área, identificaram-se os anti-virais não-nucleosídicos inibidores de TR (NNRTIs = non-nucleoside reverse transcriptase inhibitors) onde encontram-se nevirapina, delavirdina e efavirenz.


                 Estudos do genoma viral indicaram a existência de protease vírus-específica que poderia, também, representar um novo alvo-terapêutico para o tratamento da AIDS. Desta feita, tratando-se de um mecanismo de ação distinto abria-se enormes possibilidades representando possível tratamento de cêpas resistentes aos TR´i, assim como novas associações e combinações terapêuticas de maior eficácia. Os primeiros inibidores desta aspartato-protease viral surgem em 1995, representado pelo saquinavir, precursor do indinavir (1996) e ritonavir (1996), a seguir surgem o nelfinavir (1999) e amprenavir (1999) e por último o atazanavir (2003). O combate ao HIV ganhou importante recurso quimioterápico representado pelo maraviroc (2007), um novo agente anti-retroviral que atua ao nível de citoquinas (CCR5) presentes nas membranas de células imunoativas humanas, que são reconhecidas pelo vírus e facilitam sua internalização para as células do hospedeiro. Inibindo esta citoquina, previne-se a internalização do vírus prejudicando seu ciclo evolutivo celular.
A Linha do Tempo da Química Medicinal para concluir esta parte relativa aos fármacos anti-virais não pode deixar de mencionar aqueles que são eficazes no tratmento da gripe aviária (vírus H5N1; H1N1, H3N2), atuando como inibidores de neuroaminidase (NA), proteína presente no envelope viral cuja estrutura foi elucidada e teve seu mecanismo de ação esclarecido, regulando a internalização viral, por interação com resíduos de ácido sialíco de membrana de células plasmáticas do hospedeiro. Durante projeto de descoberta racional de fármacos anti-virais, análogos modificados do ácido siálico, levaram à identificação do zanamivir (1989; RelenzaR), primeiro inibidor de NA anti-viral, comercializado pela GSK, a partir de 1993. Embora eficiente, este fármaco, devido à sua baixíssima biodisponibilidade, é empregado por via nasal o que estimulou estudos subsequentes visando a identificação de NAi ativos por via oral. Estes estudos culminaram com a descoberta do oseltamivir (TamifluR), em 2009, que é um pró-fármaco, empregado na forma do precursor éster etílico, que por ação de esterases libera a forma ativa do inibidor competitivo de NA.
           Na próxima parte desta Linha do Tempo da Química Medicinal, a décima, trataremos da descoberta ou invenção dos anti-inflamatórios não esteróides de segunda geração (e.g. celecoxibe).
Obrigado por ler.